quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Frei Vicente Bogard: “Lepra”, superação e altruísmo

Luiz Maurício de Abreu Arruda
Projeto Quissamã Memória Viva e Acervo Heitor Costa
      A prática de nomear logradouros quase sempre é identificada como distorção da legislatura municipal, porém, um olhar mais atento é capaz de evidenciar como esse processo é capaz de reproduzir a memória de personagens e fatos da história nacional e local. No entanto, é importante destacar que o tempo é capaz de diluir o significado das homenagens e torná-las pouco mais do que uma placa de rua.[1]
      Ainda que esse exercício demonstre a clara expressão de uma história positivista, que tem como grande pilar, privilegiar os grandes fatos e personagens, verificamos em algumas dessas “homenagens” a possibilidade de revisitar histórias de vida que realmente encantam devido a sua abnegação e dedicação ao semelhante. Nesse artigo trataremos de um sacerdote da Ordem Terceira Franciscana Secular , frei Vicente Bogard.[2]
      Frei Vicente foi capelão durante longo período na antiga Colônia Tavares de Macedo. Após ser diagnosticado com “lepra” (hanseníase), durante um período em que a principal política profilática do Estado era a internação compulsória, buscou tratamento na antiga Colônia e lá permaneceu mesmo depois de ser curado.[3]
      É interessante destacar a atuação constante desse religioso, pois sua vida está na confluência de dois municípios, Itaboraí e Quissamã. A primeira fotografia (esquerda) registra Frei Vicente ainda muito jovem junto de seus coroinhas em frente à Gruta Nossa Senhora de Lourdes em Quissamã [4], onde atuava como sacerdote. Na segunda fotografia (direita) trata-se do frei com aproximadamente 60 anos.[5]
      Caracterizado por uma pessoa de hábitos extremamente simples, frei Vicente era admirado por aqueles que o conheciam, devido principalmente a sua dedicação aos doentes e ao zelo e compromisso religioso. Em Itaboraí, sua atuação por aqueles que padeciam internados na Colônia Tavares de Macedo é algo presente na memória dos antigos ex-internos, que conviveram com o religioso. Aonde chegava já era rodeado por crianças que alegres o cercavam para ganhar doces e balas.[6]
      Participava ativamente junto à comunidade católica local e de outros municípios, buscando arrecadar fundos e donativos para aliviar o sofrimento dos doentes e de seus familiares. Através do elemento religioso, contribuiu na dissolução do forte estigma existente junto aos doentes, pois através das festas religiosas os “sãos”, movidos pela fé pelo sentimento de caridade, buscavam a Colônia através das atividades religiosas.
      Outra importante ação na Colônia Tavares de Macedo ocorreu no final da década de 1950, quando Frei Vicente liderou a campanha pela construção da Capela Nossa Senhora Aparecida, para facilitar o deslocamento dos doentes.[7] A construção ocorreu em um dos antigos pavilhões de internamento. [8] Essa campanha foi exaustiva, atraindo membros da comunidade católica, além da adesão de outros atores que buscaram sensibilizar a sociedade local da necessidade do novo templo para os doentes.
      Trabalhou até os últimos momentos de sua vida, quando já em idade avançada morreu tragicamente após descer do coletivo em Venda das Pedras, quando buscava atravessar a rodovia.[9]

Fontes e Bibliografia:

[1] DIAS, Reginaldo Benedito. A História além das placas: os nomes de ruas de Maringá (PR) e a memória histórica. In: Revista de História e Ensino, Londrina, v. 6, p. 103-120, out. 2000.
[2] Devido à presença marcante da Ordem Franciscana em Itaboraí, sugerimos a leitura de dois textos deste Projeto: COSTA, Gilciano Menezes. As relações escravistas no Convento de São Boaventura. Revista Tessituras, Nº6, Maio de 2015, p. 82-101. Disponível em: http://historiadeitaborai.blogspot.com.br/…/artigo-publicad… e http://www.revistatessituras.com.br/arquivo/5.pdf . Ver também: COSTA, Gilciano Menezes. O Convento de São Boaventura (1925). História de Itaboraí: Pesquisa, Memória e Educação. 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=432016303637154&id=351048125067306&substory_index=0.
[3] É importante destacar que após o final da Segunda Guerra Mundial, graças aos avanços da indústria químico-farmacêutica e das pesquisas laboratoriais, o uso das sulfas como principal terapia aos hansenianos começou a produzir resultados satisfatórios e com isso aumentou consideravelmente o número de altas. ARRUDA, Luiz Maurício de Abreu. “A nova Jericó maldita”. Um estudo sobre a Colônia de Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
[4] A Gruta Nossa Senhora de Lourdes foi construída em 1928.
[5] A fotografia da esquerda é datada de 1931 e foi gentilmente cedida pelo Projeto Quissamã Memória Viva. Agradeço pelas informações fornecidas por Helianna Barcellos de Oliveira, que muito nos auxiliou sobre a atuação do Frei Vicente em Quissamã. A fotografia da direita foi publicada no Jornal O Itaborahyense, nº2124, ano 73, 10 de janeiro de 1968.
[6] Para preservar os depoentes, utilizamos pseudônimos. Entrevista concedida ao autor pelo ex-interno Daniel em 9 de dezembro de 2013 e Jonas em 10 de janeiro de 2014 e Jornal O Itaborahyense, nº2397, ano 85, 27 de abril de 1977.
[7] Quando ainda não existia o tratamento poliquimioterápico (PQT), era comum em alguns casos(principalmente aqueles que não tinham resposta ao tratamento com as sulfas) a mutilação das extremidades do corpo do doente, principalmente dos membros inferiores, comprometendo assim a locomoção.
[8] Para saber mais sobre a primeira Capela da Colônia Tavares de Macedo: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=353940428111409&id=351048125067306&substory_index=0
[9] Segundo o depoimento da ex-funcionária Martha, da Colônia Tavares de Macedo, frei Vicente caminhava com certa dificuldade e talvez isso possa ter sido um dos motivos de seu acidente. Jornal O Fluminense de 22 de abril de 1977 e Jornal O Itaborahyense, nº2397, ano 85, 27 de abril de 1977.

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Luiz Maurício de Abreu Arruda é Professor de História na rede municipal de Rio Bonito e Mestre em História Política (UERJ). Autor da obra "A nova Jericó Maldita”:Um estudo sobre a Colônia do Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953). Disponível em: http://historiadeitaborai.blogspot.com.br/sear…/label/Textos

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